La Trahison des Clercs
Julien Benda
Em 1927, o filósofo francês Julien Benda (1867-1956), publicou La Trahison des Clercs, um livro em que formula uma acusação: “as pessoas que têm a função de defender os valores eternos e desinteressados, como a justiça e a razão, que eu chamo clérigos, trairam essa função em proveito de interesses práticos” . Para Benda, os valores da justiça, da verdade e da razão são perenes (statiques), desinteressados e racionais. Mas as pessoas que os deveriam defender – políticos, jornalistas, ensaístas, escritores – deixaram transformar-se em “clérigos”, isto é, defensores e propagandistas de ideias opostas. Em nome da “ordem” atacaram a democracia e o pluralismo, defendendo a autoridade do estado monolítico, e negaram a liberdade, defendendo a inevitabilidade. La Trahison des Clercs foi um livro premonitório. A ascensão do fascismo, que encarou a democracia como “antecâmara do comunismo“, propalou as ideias de “ordem“, “estado forte” e da infalibilidade do líder (führerprinzip), contra as ideias de racionalidade e liberdade individual. Apropriou-se do nome de Deus, da ideia de Pátria e subverteu os valores da Família e do Trabalho, colocando-os nos estandartes partidários com slogans como ‘patrie, famille, travail‘ ou ‘deus, pátria, autoridade‘. Por seu turno, o comunismo quis relativizar a razão, a verdade e a justiça, que considerou serem valores “de classe“, enquanto a ideia de liberdade foi substituída pela inevitabilidade e pela marcha inexorável da história, resultantes das simplificações mecanicistas do “materialismo dialético” e do “materialismo histórico”. Até a criatividade artística foi negada e reduzida a mera consequência das condições económicas. Ao deixarem-se engajar na onda da propaganda dos totalitarismos, as elites intelectuais – os “clérigos” – renegaram a sua missão e foram agentes e cúmplices dos regimes autocráticos e tenebrosos. Julien Benda não foi propriamente imparcial ou sequer equidistante nas suas críticas. Manteve-se crítico da ideologia comunista, mas admitiu publicamente que os intelectuais deviam “escolher um lado” e assumiu estar do lado dos partidos comunistas, na altura sob a influência soviética e estalinista, tendo chegado ao ponto de justificar os massacres cometidos pelos comunistas na guerra civil espanhola e a execução, em 1949, do húngaro László Rajk, acusado de ser um “espião titista” . Todavia, a ideia central de Benda – a responsabilidade dos “clérigos” pela defesa da razão, da verdade e da justiça – mantém a pertinência, hoje como antes da Segunda Guerra Mundial.